Em um sonho recente, me vi menino outra vez. Menino bem à época quando parti com minha família do sítio onde nascera, em Lavras da Mangabeira, e viemos viver na cidade, em Crato, na região do Cariri cearense. Sei explicar pouco daquilo tudo, via, no entanto, sacudido de emoções e movimento, a hora da mudança; caminhão, jipe, malas, cacarecos espalhados pela calçada, na casa que meu pai construíra próxima da capelinha do sítio, em colina que divisava lá longe a bagaceira do engenho, a casa grande em que moravam meus avós paternos, uma represa do açude velho e o engenho. Logo embaixo passava, e fazia curva, a estrada principal que levava aos outros sítios mais acima, Grossos, Caraíbas, Santa Catarina, outros mais.
Via-me entre tantas esperas de desconhecido como nunca antes. Eu, menino dos matos, de poucos carros, multidão nenhuma, ignorante de gelo, calçamento. O que sabia de pessoas aglomeradas coubera no terreiro da casa grande na noite em que minha avó promovera uma quermesse de leilão para arrecadar recursos e restaurar a capela. Muitas prendas foram postas numa mesa grande e chegou gente de tudo quanto foi canto, dos lugares em volta. Daí, arriscar sair para mais longe, de onde meu pai voltava todo final de semana e preparara as coisas a fim de irmos morar, seria tarefa das maiores, na cabeça de uma criança de quatro anos.
Mas não me consultaram se queria largar para trás vacas, bezerros, ovelhas, jumentos, galinhas, pássaros, brisa gostosa das paredes de açude, as nuvens, a máquina de costura de minha mãe a cantar que eu observava nas manhãs da varanda, as raposas que meu pai pegava nas armadilhas deixadas no quintal da casa em incursões perversas ao poleiro das galinhas. A casa que só tinha de cimento queimado alguns cômodos, enquanto os demais eram de tijolo rústico, quase chão batido, em que mijávamos na absoluta naturalidade pelo fundo da rede, nas noites frias do sertão.
Fui sendo arrastado naquela voragem esquisita. Minha mãe chorava inconsolavelmente; meu pai preocupado, no meio do povo, a dar ordens na arrumação dos trens; os outros irmãos, Everardo, Lydia, os mais velhos, e Sônia, a mais nova, se perdiam com facilidade em meio àquilo tudo de partida sem esperança de um dia retornar a não nas férias do meio do ano, que aos poucos foram perdendo a graças, na concorrência dos novos apegos da cidade, colégios, amigos, namoradas, filmes, revistas, sorvetes, chocolates, pão do reino, essas bugigangas embusteiras dos mundos industrializados.
Saía de jeito esquizofrênico, forçando a originalidade das coisas no coração da gente, sem ser perguntado se desejava ir, levado para fora do universo inocente onde fora posto também sem ser perguntado. Lembro de poucos detalhes daquela peça rigorosa pregada pelo destino. Uns pedaços de memória afloraram nessa hora de sonho, contudo em algum lugar habita ainda um forte sentimento de saudade particular de mim mesmo, bicho assustado de saudade encolhido no lugar misterioso do qual, vez em quando, resolve sair para pregar das suas e enfiar de com raiva as unhas nos molhes abandonados do tempo, nessas avenidas longas do inconsciente.
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