quinta-feira, 19 de março de 2009

A POÉTICA DE LINHARES FILHO

Era uma vez o sal de umas águas
que em ti incrustaram –
menino –
o exercício da contemplação.

Era uma vez o rio,
cujos líquidos movimentos
a ti revelaram
a flexura das sílabas.

E, desde então,
incansável,
passaste a soletrar
o silêncio
sob a crosta das cartilhas.

Tuas mãos –
e nem o sabias –
já se estendiam
aos Sumos do Tempo, –Tempo
de Colheita –
à Voz das Coisas,
a Andanças e Marinhagens,
a Rebuscas e Reencontros,
aos Cantos de Fuga e Ancoragem,
aos frutos de árvores outras,
numa insone semeadura.

Menino,
já te impregnavam as paisagens,
o silêncio intumescido dos afogados,
o trigo ávido de mendigos,
a serpente de cedro sorrateira,
o repentino eflúvio,
a solidão do sótão.

Menino
sabias ainda
dos navios do longe,
dos farnéis
que se evolam
das tácitas navegações.


II


Vejo-te, na noite montanhosa, –
suspensa a pena –
surpreender
o voo sinuoso das palavras,
Uma infância de pássaros
em teu alpendre musical.
Tua descoberta do verso oculto
no mofo dos baús,
no esterco das andorinhas.
A salsugem da memória.
As rugas que não se desfazem
no rosto dos antepassados.
O cedro da escada. Os tísicos passos.
A noite suspensa no olhar dos morcegos.
O verde gemido do canavial.

Vejo-te, na montanha da noite,
percorrer a sede da folha de papel.
(O vento contorce a cidade,
e o mar tem redondezas incomuns.
Onde o anzol por que pescar
os peixes dos túmidos silêncios?)
Tua busca por outras essências,
por odores outros é falta
que se converte
em inesgotável alimento.
O sal de um rio te conserva o peito.
Um navio singra tuas veias.
Águas a roça de tua canção.
Girassol,
pressentes a luz.


III
Palmilhas o pó da telha-vã
da casa onde nasceste. O vento
em ti esculpe o geométrico perfume
do pé de romã. Lavras da Mangabeira,
o augúrio emplumado
das acauãs. O sino da Matriz
trincando as manhãs. O susto
ruflado das arribaçãs. O tecido
do enigma das praias
no voo das jaçanãs. O navio
anunciado na preamar
da febre terçã. O trilo dos grilos,
o mosto da sede, o pão de teu afã.
O graal de teu pai
doado às bocas malsãs. Tua mãe
coalhando as tardes
em cores louçãs. (Ainda
hoje, desvelas-lhe os pincéis: há
uma outra tela, mais alvaçã;
e o pouso daquela ave
a inscrever-te a cambraia chã.)
Posta a mesa,
do vazio de uma cadeira evola-se
o inefável tempero da marrã.
Mas ainda florescem
o branco viçoso das dálias
e as glumas das longínquas avelãs.
Um xale se derrama
por sobre a fímbria da noite
e o negror de sua lã.


IV

As águas do poema te reinventam;
e enfloras, assim, nossos caminhos:
ânfora que és de nossa inescrutável sede.
Empresta-nos a voz,
uma vez que, na noite alta,
sílaba alguma pousa sobre o nosso sono.
Onde o encanto das grandes coisas?
Onde a solidão de lânguidos silêncios?
Onde a ironia dos segredos?
Como, então, reencontrarmos a face –
não esta, mas aquela que nos foge aos retratos?
Empresta-nos a voz, há um Deus
que em ti habita, e, em seu nome,
compões salmos e hinos;
por isso, mais nada havendo,
alguma coisa sempre há, maior,
muito maior que o simples ser.
Empresta-nos a voz, se não,
como poderemos conter
o anônimo vôo do suicida,
captar a voz das coisas,
ouvir o rumor que borbulha no intocável?
Empresta-nos a voz, o teu canteiro de orvalho,
a branca cinza do cigarro,
o anzol que espreita a palavra-peixe,
o boi mastigando um sonho antigo,
as sombras que se alastram na noite.
Bem nos ensinaste: as coisas
nos assaltam e improvisam.





V

O sopro do vento tem lá seu motor;
movendo as águas da inspiração:
farol do horizonte; navio-canção,
navega sem rumo no seu estertor.
A mão que cultiva grande dissabor
é a mesma que bebe do mel do cantar,
o sono das redes lá no copiá,
nas pautas de Lavras, deixa seu enredo;
e guarda do vento seu grande segredo
cantando galope na beira do mar.


Quem dera que a vida bordasse a paisagem
com as cores que jorram do mar tropical;
aspira o poeta, vislumbra um fanal;
num barco de rimas, prossegue a viagem;
Notícias de Bordo – essa marinhagem –
eis o pão e o vinho desse caminhar.
Já vejo o poeta seu sonho adubar:
criando cenários e cruzando lendas,
a tecer as fibras de suas contendas
nos dez de galope na beira do mar.

Notícias de Bordo, os ventos as levam;
faíscam nos mares as grandes centelhas;
as chuvas que lavam o pó dessas telhas,
aéreas notícias, que tudo elevam.
Notícias dissolvem, notícias selam
o verde da cana, o mel pelo ar –
estradas alumbram seu caminhar.
Às vezes lembranças, dum simples canto,
do vão calcinado – lições de espanto
nos dez de galope na beira do mar.

VI

A argila do poema te alucina:
é fôrma que se perde e que se firma;
desertos cravejados na retina
a sede de outros cântaros de vinho.

Um dia recolheste o tênue fio
com que se cose a pele desse rio
que deságua em teu peito em desatino
e devolve-te ao alpendre tão menino.

Mas o fulgor das dunas precipita
a fuga dos mistérios que se agitam
nas crinas do cavalo de arco-íris.

Nessa escassa colheita, o meu limite
não consegue alcançar, Linhares Filho,
o que em teu canto é tão claro convite.

Carlos Augusto Viana