Memória
Um espírito livre
Educador, poeta e espírito livre: hoje, 21 de maio, comemora-se o centenário do poeta Filgueiras Lima, um arquiteto do humanismo e poeta das coisas da terra o povo
Henrique Araújo.
Edição Especial – 21 de maio de 2009.
Se Antônio tinha uma dúvida de português, procurava imediatamente o pai, que, interrompendo as leituras costumeiras, folheava os quatro ou cinco dicionários à mão. Lá fora, corria o dia em Lavras da Mangabeira, no interior do Ceará. Vez em quando, um vento frio vinha do rio Salgado. Na casinha da família, o pai colhia de cada volume o significado da palavra procurada. Queria que o menino descobrisse: havia nuances. Demorada, a operação fatigava o caçula do professor e poeta Filgueiras Lima, cujo centenário é comemorado hoje na escola que, ao lado de Paulo Sarasate, ajudou a fundar em 1938. Por telefone, Antonio, hoje com 60 anos, relembra os menores gestos do pai. Fala da sala da diretoria do colégio Lourenço Filho. Ali, comanda o empreendimento que foi a menina dos olhos de Filgueiras Lima.
“Vamos comemorar o centenário do poeta realizando o que ele sempre fazia: uma eucaristia com os alunos da escola”, adianta Antônio Filgueiras Lima Filho. Porque educação e poesia sempre formaram um par ordenado harmônico na vida de Filgueiras Lima. No livro Ensina como quem reza - Vida e tempo de Filgueiras Lima, biografia assinada por Juarez Leitão disponível no site que trata da obra do poeta, lê-se: “Havia entre o poeta e o professor a mais perfeita compatibilidade e, ao que parece, mais do que compatíveis, a poesia e o ensino se fizeram em sua vida reciprocamente necessários. Não poderíamos ter o poeta sem o compromisso humano do Educador, a repartir seu conhecimento, suas descobertas, sua filosofia e suas crenças com outros construtores do mundo, a juventude vigorosa que deveria continuar a compor o tempo, a vida e o país”. Foi assim desde o início. Mesmo antes da publicação de Festa de ritmos (1932).
Mesmo antes de ocupar a função de Inspetor Regional do Ensino, ainda em 1927. Para o escritor e professor Dimas Macedo, Filgueiras Lima “foi um dos grandes poetas do modernismo do Ceará”. Se antes dedicara-se de corpo e alma ao manuseio do soneto tipicamente parnasiano, com os ventos de mudança soprados pela Semana de 1922, o poeta cearense renovou-se. E, com ele, a poesia local. “Filgueiras participou do primeiro momento desse modernismo, da fase mais heróica. E foi também um grande educador e um dos poetas mais populares do Ceará. Era disputado nas escolas pra recitar os poemas.”
Ainda segundo Macedo, a temática da poesia de Filgueiras Lima “era telúrica”. Assim, ele acredita, a obra “Terra da luz condensa essa temática”. Outra grande marca da poesia do cearense era a sonoridade. “Poeta de sonoridade muito aguda e forte apelo amoroso. Poeta de grande significação e grande arquiteto do movimento Nova Escola”. Filgueiras defendia a língua nacional e empunhava a bandeira dos heróis brasileiros que participaram da II Guerra Mundial. De acordo com Macedo, essas características não entravam em choque com o ideário modernista. Juarez Leitão escreve: “Sonetista caprichoso, mestre do bendizer parnasiano, da rima e da métrica, não temeu a chegada da poesia moderna, sendo no Ceará um de seus precursores. Evoluiu, ousou, atirou-se sem medo no novo modelo formal dos seguidores da Semana de 22. Isto é, quando andou trouxe o tempo e do tempo continuou a fazer o barro de suas fantasias”.
Filgueiras Lima nasceu em 21 de maio de 1909 e faleceu em 28 de setembro de 1965. Deixou três filhos e esposa, dona Amazonia Braga de Filgueiras Lima. Escreveu Festa de Ritmos (1932), Ritmo Essencial (1944), Terra da Luz (1956) e O Mágico e o Tempo (1965). Em 1990, a Imprensa Universitária publicou o volume contendo as obras completas do poeta. Foi professor e escritor. Fundou o Conselho de Educação do Ceará.
EMAIS
A saudade do piano
(de Festa de ritmos)
Em meio à sala, agora tão deserta,
o piano dormita.
E uma saudade como que palpita,
desperta,
na sua alma trêmula de sons,
na sua alma de riso e de queixume,
irmã das almas límpidas dos bons,
onde florescem sonhos e segredos:
– é a saudade sutil de teu perfume,
– é a saudade macia de teus dedos...
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