sábado, 12 de dezembro de 2009

PEREIRA BELÉM - Por Emerson Monteiro

Vez por outra, protozoários resistentes ao passado pregam lá suas peças e fazem retornar ao écran da memória fantasmas meio adormecidos pelos cantos distantes das ruas de antigamente. Postam intactos, ao dispor das rotativas da atualidade, exemplares raros, carismas, parecidos com desafios que desçam da comodidade e venham se beatificar nas formas posteriores, o que, por vezes, levam a outras telas e viram movimento de pensamentos. Em tudo isso, um desejo de perenidade, peças soltas por dentro da alma vigilante.
Bom, essa volta toda para contar de Pereira Belém, um alcoólatra sorridente que circulava as minhas ruas de menino, no Crato dos anos 60, pelo bairro onde eu morava, Pinto Madeira.
De tez morena intumescida no uso da bebida, olhos empapuçados, ainda moço, de seus trinta e poucos, camisa aberta ao peito, sapatos rotos nos pés, cabelos pretos oleosos, escorridos para trás, palavras irreverentes agradáveis para tudo e todos, deslizava rua acima, rua abaixo, de preferência num itinerário de bodegas, a fechar longos discursos de atrapalhados assuntos com o grito sonoro de “Viva Pereira Belém!”. No brado, a senha da própria preservação, o que emitia com entusiasmo de causar inveja aos vocacionados profissionais da louvação e ganância, característicos da política ocidental.
Por trás daquele jeito animado de Pereira Belém, o ar de quem zombava de si mesmo, vítima que se via dos porres homéricos que lhe compunham a tortuosa sobrevivência. À maneira de instrumentista que maestro conduzisse, movia as hastes matemáticas das cifras na execução de invisível peça, a dependência química de ator burlesco dos teatros decadentes.
Os meninos, nisso, sentiam o par dos acontecimentos na feira do cotidiano. Espontâneo chegava, montava a cena, alegrava e saía dos nossos intervalos de escola e elaboração das tarefas. Compreendíamos virem só mostrar, no picadeiro das esquinas, sua desgraça, quais espinhos da garrancheira maior da raça humana, semelhante aos espinhos que formam troncos das vistosas roseiras do bem sucedido. Algo comparável ao cinema da sociedade, à literatura dos que aperreados.
Destarte, as moendas da imaginação voltaram com essa figura do Crato de meu tempo de menino, num vigoroso “Viva Pereira Belém!” suficiente a montar palavras que lhe preservam um pouco adiante a existência, cinco décadas depois do seu desaparecimento.