LAVRAS EM VERSO E PROSA





Memória
Dimas Macedo


Quando o meu avô, José,
era um tufão dos deuses
que na alma se escondia,
a minha mãe Maria
Eliete de Macedo
plantou uma rosa entre os dedos
no socavão do brejo.
Lembro-me como se fosse ontem
que as opalinas do sonho se moviam sóbrias:
a emoção num canto da dispensa
e o coração a balir como um cordeiro.
Fizeram-se fogos de amargura os dias
e eu previ então que sobrariam
uns restos de ausência
e uma dor maior
que o por-do-sol nas margens do Salgado.

Meu pai morreu de amor
e uma nuvem densa
lhe encobriu o corpo
e a minha mãe partiu sozinha
em uma noite fria
levada pelos ventos.

Ficou-me essa tensão maior,
essa alegria breve.
E a rosa do amor
lançada sobre a neve
se fez em mim a rosa do torpor.

O meu avô, Antônio;
a minha avó, Maria;
e a outra avó, também,
Maria das Mercês,
quiseram que o clarão
da arte de escrever
fosse matando aos poucos
um membro da família.


A Minha Mãe, Habitante da Morte
Linhares Filho



Tua branca rede já não se arma
para a sesta. Todavia guardo,
com o ranger longínquo dos armadores,
a placidez do teu sono
a entreter o meu sonho
No teu aposento, mansa e invisível, dorme uma ave.

À mesa posta, entre o apetite e a lembrança,
há uma cadeira sem dono.
Falta ao alimento o tempero
que de tuas mãos ninguém pôde aprender.
Mas junto a mim está um cântaro
que se encheu de lágrimas que libertam.

As dálias do jardim continuam a florescer,
cada ano, tão brancas, tão viçosas! Contudo
parecem reclamar a sutileza
de um carinho que o meu sono não esquece...

Teus pincéis dormem
com a resignação de pincéis,
Minha alma imperfeita, a despeito de teres sido
artista perfeita, pede, todo dia,
os últimos retoques.

Santa e elmo,
no navio em que eu encontrar borrasca,
os teus olhos serão santelmo...

No silêncio noturno não se ouvem mais
os passos cautelosos com que fechavas
a janela que dá para a rua,
no entanto percebo,
na lã escura da noite,
o abrigo do teu xale.


A casa de meu avô
Batista de Lima

A casa de meu avô
tem histórias que o vento
esqueceu nas cumeeiras
Traços traçam
amarelo de tempo
nas pessoas dos retratos
No chapéu de meu avô
o peso do esperar
pendurou-se nas abas


O último cachorro
deixou seu jeito no canto da porta
seu grito no longe da serra
e no susto dos bichos


Nos varais as marcas dos panos
se envergonham de nudez
Nos baús o cheiro dos lençóis
espera a vida
que se esvaiu pelas frechas

A casa de meu avô
é uma dor sem jeito


Quando começou o inverno
    Filgueiras Lima

Nem uma nuvem pelo céu!
E os olhos ansiosos do caboclo
lera, nas impassibilidade do infinito,
o terrível destino do cearense!
Chupou no cachimbo longamente
e, depois, lá se foi
pela estrada poeirenta,
assobiando qualquer coisa que dizia — Esperança.

Mas, noutra manhã, ao despertar,
o sertanejo escutou,
de sua rede de algodão,
a polêmica dos sapos na lagoa,
a cantiga da chuva nos caminhos
e o choro alegre dos rios nos grotões...
E quando, da porta de sua casa pobre
— para mim muito mais rica do que um templo! —,
ele viu a vegetação ressuscitando
e as árvores engalanadas de folhas verdes,
pôs a enxada no ombro,
beijou os filhinhos e a esposa
e seguiu para a roça, alegremente,
a cantar qualquer coisa que dizia — Felicidade!

(A terra molhada pela chuva
tinha o cheiro das mulheres do sertão...)



Metamorfose
Rosa Firmo 

O dia amanheceu prenhe
A crisálida já se rasgava em cores
Rompe o casulo
Em marcha silenciosa, sem dores.

As flores esperam maduras
O beijo do colibri
Que transporta outra vida,
Para jardins colorir.

O sol embalado em nuvens coloridas
Vaza sobre o rio sereno
As luzes da aurora
Enchem de vida e esperança
O ressurgir do novo dia
Quando tudo é silêncio lá fora.




Rosicler do Alvorecer
Rosa Firmo

Tenho retalhos brancos
daquela alvorada amena e sutil
a clarineta a luz, os anjos, os santos,
o caminho, o rio, a flor azul anil.

O rosicler borda o tom da aurora e desce
uma música de suave harmonia,
e o canto do pássaro se veste
de sons crescentes em simetria.

Sigo uma trilha velha e sinuosa
de cansadas veredas, enrugadas e fria,
um sino no seu badalar, saudosa
entôo uma harmoniosa melodia.



Vale do Rosário
Rosa Firmo

É um lastro verde onde canta o riacho
Inundando de beleza os vastos prados
Lá por trás a montanha onde o sol em facho
Ilumina com seus raios derramados.

O camponês fatigado despede-se do dia
Saúda o milharal verde que ali floresce
A cerca tremula na lama macia
O cristalino orvalho a flor umedece.

Os verdes prados exalam cheiro da gameleira,
Pássaros cantam na fronde do juazeiro
Num ritmo compassado tal orquestra

O cavalo azulão salta a porteira,
Come o verde capim no outeiro
A lua branca derrama luz sobre a floresta.




BANDA DE MÚSICA 
Antonio Filgueiras Lima

A banda de música da minha terra natal, 
nos meus tempos de menino vagabundo,
era a banda de música mais original 
que havia neste mundo. 

Mestre Bezerra, o “maioral” da banda, 
metido na sua farda branca reluzente, 
ia na frente,musicalmente, 
como um príncipe negro da Loanda. 

Ele tocava um instrumento enorme,
desconforme, 
que o envolvia da cabeça ao tronco,
qual uma cobra amarela de metal, 
cuja boca se abria para a gente, 
ameaçadoramente... 

Era um bombardão que nos falava assim, 
em meio a um clássico e monótono dobrado, 
sempre no mesmo som 
sem tom 
tão bom: 
prom... prom... 
prom... prom... 

O mulato da requinta espiritual, 
requintava 
num finíssimo requinte musical. 

Mas o pistão estralejava, 
gritava, 
escandalizava!...
e o bombo 
com o lombo 
já bambo 
num ribombo 
de trovão: 
tum-bum-bão! 
tum-bum-bão!

Já vai tão longe, tão longe... 
mas inda hoje eu escuto, emocionado, 
nos recessos profundos do meu ser, 
a melodia indefinida e mansa 
do velhíssimo dobrado 
que embalou os meu sonhos de criança. 
E, diante da infância que passou, 
a distância afinal me persuade 
de que aquela banda de música pequenina 
era, naquele tempo, tão harmoniosa 
quanto hoje, ouvida assim, através da saudade...