segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O MANTO E A TIGELA - Emerson Monteiro

Consta da tradição chinesa que, no século VII da nossa era, existiu um jovem conhecido por Hui-neng, discípulo dedicado aos estudos das coisas religiosas de sua crença a ponto de chegar ao posto de patriarca do Zen-budismo. 

Lenhador e analfabeto, sensível à vocação que abraçara, foi admitido no mosteiro da ordem apesar de não possuir quase nenhum conhecimento literário das santas escrituras da religião. 

Desde o noviciado o discípulo chamava a si toda a atenção do quinto patriarca, que nele distingui o seu próximo sucessor.

No entanto, sabedor das artimanhas dos outros monges e querendo prevenir os efeitos característicos da inveja, esse cancro insano da humana natureza, na hora certa, buscou transmitir em segredo a Hui-neng o manto e a tigela que simbolizavam as funções de Grande Mestre da corporação monacal que dirigia.

Sem alimentar qualquer esperança de natural aceitação dos demais pelo seu gesto, a um só tempo orientou o devoto para que rumasse ao sul do país, afastando-se o máximo da presença dos outros candidatos na sucessão do mosteiro.

Passados alguns dias, margem suficiente a que o fugitivo percorresse larga distância, o patriarca reuniu a comunidade e revelou, nos justos detalhes, o que acontecera. Com isso, de logo, monges exaltados saíram ao encalço de Hui-neng, decididos resgatar a tigela e o manto, prendas de graduação evolutiva na corporação, considerando imprópria a medida do superior.

Quando Hui-ming, ex-militar e um dos rebeldes dispostos a utilizar a força para obter seus intentos, galgou chegar ao pouso onde o sexto patriarca se refugiara, este jovem monge apenas largou sobre uma rocha dali os cobiçados objetos que consigo transportava, ao instante em que buscou evadir-se, afirmando, contudo:

- Este manto que me envolve representa o sagrado; não me sendo correto por ele usar da violência em nenhuma hipótese. 

A seu modo, homem de força bruta considerável, Hui-ming correu em direção do manto e da tigela. Aquilo a princípio tarefa das mais insignificantes tornou-se improvável, porquanto, ainda que despendesse suficiente energia, nada resolveu de retirar os objetos que se achavam como que integrados pela rocha.

O fenômeno insólito assustou-o sobremaneira, alertando quanto aos aspectos transcendentais da situação. Como inútil para repetir as tentativas, Hui-ming só então observou o valor especial do novo patriarca, nunca tão indicado ao título que recebera.
Cabisbaixo, nessa hora mudou de atitude e exclamou:

- Trabalhador, eu vim aqui pelo ensinamento, e não pelo manto!

Hui-neng retornou ao ponto em que largara o desafiante, dirigindo-lhe saudação respeitosa e pedindo que explicasse o ensinamento recolhido daquela experiência, e resolveu por inteiro a crise que se esboçara.

Entre os textos zen, esta história é conhecida como O sutra de Hui-neng, que serve de transmissão de preceitos há vários séculos.