quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

CARETAS - Emerson Monteiro

Algumas réstias de passado por vezes aparecem na memória e preenchem as épocas da infância em que, não fossem elas, sobraria exclusiva a impressão de haver esperado no vazio o momento de começar a viver vida crescida. Nessas minhas lembranças remotas persistem as movimentações sertanejas para comemorar os dias da Semana Santa, no universo rural em que vivi os primeiros acontecimentos que consigo recordar.

Em meio aos atos sacros da pequena capela da fazenda, sob a responsabilidade de minha avó e suas assistentes, outras pessoas se movimentavam para compor a cena alusiva aos sacrifícios de Jesus em sua paixão. Homens feitos se vestiam de gibões de vaqueiro, feitos de couro curtido, com caretas de gado a lhes cobrir o rosto, chocalhos pendurados nos ombros e armados de chiqueiradores. Com isso, passavam a montar guarda permanente em volta do território escolhido para o Sítio do Judas. Ali ficavam, fixados ao solo da bagaceira, galhos de árvores arranjados com frutas, rapaduras, bananeiras e outras prendas. Próximos à beira do caminho usual, as pessoas que circulavam nas imediações se viam na condição de se livrar da agressividade desses feitores, donos postiços daquele pedaço de chão.

As máscaras escondiam a identidade verdadeira dos que desempenhavam o papel de vilão, cobertos pela impunidade, a causar temor à criançada e aos adultos que se aventurassem a roubar o sítio como parte da trama.

Chegada a noite, os folguedos prosseguiam, envolvendo ações típicas daquele povo rude. Outro aspecto também me ficou retido nas malhas dessas recordações, quando conheci o jogo que implicava na prática de enterrarem um galo no centro de grande círculo, deixando de fora tão só a cabeça da ave. Os participantes, de olhos vendados, depois de girados sucessivas vezes, recebiam uma longa vara e com ela passavam a bater a esmo, procurando executar o bicho indefeso. Quem acertasse o alvo, ganhava prêmios e ovação dos espectadores postados em volta, numa algazarra que invadia a noite e contagiava a escuridão.

Da idade entre três e quatro anos, me conformei pouco tempo presenciando aquilo tudo. Em pânico, sobrou-me de único caminho retornar para casa acompanhado de pessoa adulta nem um pouco satisfeita de perder a festa, dado se tratar de coisa rara naquele afastado mundo.

Deitado, insone, acompanhava de ouvido fixos, bem longe, as pancadas tétricas contra o solo, sob os gritos desesperados do galo, entremeados da farra alucinada dos circunstantes, barulho intenso a se manter até tarde da noite, trazendo clima sombrio a envolver o meu espírito. Afloravam diversas interrogações quanto à razão daquilo, o por quê do sacrifício. Uma dose qualquer de crueza marcava-me o sentido desses costumes primitivos, refletida nos modos comunitários que, mesmo agora, meio século depois, inquietam nas entranhas perguntas vagas a propósito de nossa natureza humana, afeita a gestos vulgares da mais fria violência adotada na forma de instrumento de poder.