Uma Cidade e Suas Tradições
Dimas Macedo
dim.macedo@hotmail.com
Lavras da Mangabeira, 1.072Km2, situada na região Centro Sul do Ceará, é hoje uma cidade que sofre a angústia de ver dilaceradas as suas mais nobres tradições.
Surgida nos tempos áureos da mineração, exemplo único em todo Estado, a cidade evoluiu quase como um milagre. É que os aventureiros estrangeiros, atraídos pela cobiça do metal precioso, fluíram para as margens do Salgado aos montes. Assim, o pequeno povoado foi aos poucos tomando jeito de burgo promissor. Mas logo surgiram as lides entre os mineradores, disputando uma fortuna na terra de ninguém. As lutas travaram-se e tudo só começou a ser organizado quando o Governador de Pernambuco, responsável pela jurisdição do Ceará, nomeou Luiz Quaresma Dourado para capitanear os locais de mineração e o Sargento-Mor Jerônimo Mendes da Paz para a cobrança do quinto e para manutenção da ordem, visto haverem inquietações nas cercanias das minas. Este episódio data de 1752, mas já em 1712 o Governador daquele Estado se interessava junto à administração do Ceará para explorar as abundantes minas.
Contudo, a alegria durou pouco, pois em 1758 chega a Icó a notícia da suspensão das minas do Cariri, envolvendo as minas exploradas em Mangabeira. E desta época, pode-se dizer, a cidade viveu da cobiça dos aventureiros, gente nômade que não deixou raízes na terra.
Para se avaliar a repercussão que as minas da Mangabeira tiveram no período, basta lembrar que em 1756 o então Governador de Pernambuco, Luiz José Correia de Sá, organizou a Companhia das Minas de São José dos Cariris para explorar o ouro da região. Uma caravana que, além dos capatazes e administradores habituais, trazia na sua comitiva 73 escravos para o serviço, ao preço de 100rs cada, segundo observação de Guarino Alves, citado por Raimundo Girão (in Pequena História do Ceará, 3a ed., Fortaleza, Imprensa Universitária, 1971).
Mas essa fase pouco tempo demorou, como vimos, pois o povo, proibido de garimpar e sem outra ocupação habitual, foi aos poucos abrindo passagem para os senhores bastardos com cartas de sesmaria e com plenos e irrestritos poderes para ditar as regras da administração na área de sua ocupação. E não nascendo os líderes, vão se erguendo os suntuosos engenhos de rapadura e vai crescendo progressivamente a pecuária. Os senhores começam a influenciar na política: vão tratando de organizar administrativamente a Povoação de São Vicente Ferrer.
O certo é que, em Lavras da Mangababeira, nesse agitado e turbulento período, vão-se estruturando os órgãos da direção local: por Resolução Régia de 20 de maio de 1816 o povoado é elevado à categoria de Vila; em 30 de agosto de 1813 é criada a freguesia de São Vicente Ferrer e seu primeiro pároco seria exatamente o padre José Joaquim Xavier Sobreira, filho do homem de maior projeção econômica, política e social do feudo, Francisco Xavier Ângelo.
Essa época foi a mais próspera da história de Lavras da Mangabeira. Foi a época que o município economicamente melhor viveu, com rendas satisfatoriamente altas. É a época do apogeu da economia, sustentada pelo patriarcalismo rural.
Basta para isso dizer que em 1854 o município possuía 208 fazendas e, em 1858, 44 engenhos de rapadura, segundo a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (Rio, Fundação IBGE, 1959).
Mas o progresso vai mais longe. Os grandes latifundiários começam a cuidar da educação dos filhos nas melhores casas de ensino do Nordeste, notadamente na Faculdade de Direito do Recife, e os futuros bacharéis (padres, médicos, advogados) começam a desfilar nos palácios imperiais, como é o caso de Raimundo Ferreira de Araújo Lima, que chegou a ser conselheiro imperial, Deputado Geral e Ministro da Guerra; do Brigadeiro Vicente Ferreira da Costa Piragibe, também Conselheiro do Império, Cavalheiro da Ordem de Aviz e da Ordem da Rosa; e de José Joaquim Xavier Sobreira, Deputado à Assembléia Constituinte Imperial de 1823 e integrante do primeiro Governo Temporário do Ceará, logo após à proclamação da Independência.
Ou homens que influenciam diretamente nos altos escalões da administração estadual, como é o caso de Antônio Fiúza de Pontes, Secretário da Faculdade de Direito do Ceará e deputado mais de uma vez; do Monsenhor Vicente Pinto Teixeira, Chefe do Bispado do Ceará e deputado em várias legislaturas, ou ainda meninos que já nasciam com o mérito de ser afilhado de Governador da Capitania cearense, como João Carlos Augusto, que também foi deputado na fase imperial.
Essa época da história de Lavras, pouco conhecida dos habitantes atuais da cidade, que também desconhecem outras épocas relevantes da sua memória coletiva, se encerra com duas extraordinárias conquistas: a lei provincial 1541, de 23 de agosto de 1873, cria a Comarca de Lavras da Mangabeira, e pela lei n° 2.075, de 20 de agosto de 1884, a Vila de São Vicente Ferrer é elevada á categoria de cidade.
E a época em que a cidade nasceu, é preciso que se diga, é uma época difícil da história do Estado e de toda a região nordestina. É uma fase cruel e de pouco sossego. De 1884 até o final do século dezenove, alastra-se no interior do Nordeste e especialmente na Região do Cariri a arregimentação de grupos armados, que viviam do saque e da depredação das cidades. Seitas místicas e visionárias, compostas de homens inconformados, sem terra e sem outra ocupação. E de tudo isso a cidade de Lavras não ficou ausente, visto estar localizada numa região onde mais floresceram esses tipos de sociedade.
Isso favoreceu em muito o culto do coronelismo praticado pelos donos do poder da cidade. E aqueles homens outrora sem lar, sem terra, sem destino, foram sendo aproveitados pelos senhores de engenhos que lhes garantiam o sustento em troca de defesa pessoal e de defesa de seus interesses. E por tudo a cidade não ficou imune ao coronelato. Pelo contrário, foi uma das cidades da região onde ele mais floresceu.
E no período seguinte, que vai de 1900 a 1930, aproximadamente, é o mais tumultuado da história da cidade. É o período de apogeu da política. Consolida-se no cenário político da cidade e de toda a região do Médio Salgado a figura de Dona Fideralina Augusto Lima, que substituiu o pai na política. Ele, João Carlos Augusto, várias vezes deputado.
Dona Fideralina começa a ditar as regras do jogo. Investe-se com todas as prerrogativas no poder local e começa a intervir até na órbita estadual.
Nesse curto espaço de tempo, elege três filhos deputados. Mas enquanto isso, também cuida do poder local, joga com a posição da Intendência e faz-se senhora absoluta de vasta área da região. Aí o poder é dividido entre os membros da família Augusto, especialmente os filhos da Dona Fideralina, e as transmissões do cargo de Intendente se fazem á bala, sendo que tudo recebe o beneplácito da senhora absoluta. As disputas são ferrenhas e a cidade começa a ocupar as manchetes dos jornais de Fortaleza.
Por força de grave tiroteio, a 26 de novembro de 1907, o Coronel Gustavo Augusto Lima derruba do poder o seu irmão Tenente-Coronel Honório Correia Lima; em 7 de abril de 1910, a cidade é invadida pelas tropas de Joaquim Vasques Landim, com o apoio dos maiores coronéis do Cariri, para que o poder de Lavras seja tirado das mãos do Coronel Gustavo. Mas tudo se torna vão. E começa a oposição dos inconformados e dos próprios membros da família Augusto, e não custa muito para aparecer a oportunidade para um combate em campo aberto. Em 9 de janeiro de 1922, em acirrada luta política no centro urbano da cidade, morrem três importantes políticos. E não é preciso se esperar muito para que a vingança tire de circulação o Coronel Gustavo, alvejado em plena Praça do Ferreira, no coração central de Fortaleza, exercendo ele, no momento, o cargo de Deputado Estadual.
E no final de tudo aparece a figura de Raimundo Augusto Lima, o vitorioso de tantos tumultos. Faz-se chefe a ferro e fogo, sustenta-se pela força, mas cai com a revolução de 30 para depois se levantar novamente, pois o líder da Aliança Liberal local, o Padre Raimundo Augusto Bezerra (Padre Mundoca) resolve devolver o poder ao velho cacique. A crise de continuidade deve-se ao fato da ocupação da cidade pelo Comando Revolucionário, à cata dos coronéis prepotentes e para preservação dos interesses revolucionários.
Nesse período de tantas crises nasce uma das melhores safras de filhos ilustres da cidade, que mais tarde irão brilhar e influenciar os mais diferentes setores da administração, da política e da literatura do Estado. Homens como Vicente Augusto Lima, Almir Santos Pinto, Josafá de Lima Linhares, João Clímaco Bezerra, Antônio Filgueiras Lima, João Gonçalves de Sousa, Antonio Banhos Neto, Prisco Bezerra, João Batista Pinto Nogueira, Vicente Bezerra Neto, para citarmos apenas os que nos ocorre no momento.
Mas em meio a tanto caos, as pessoas começam a abandonar a cidade, uns ressentidos com a política; outros, à procura de melhores condições. Aos poucos o poder começa a ficar solitário, com poucos chefes. Mas não custa a aparecer opositores ao velho regime, agora sob a tutela do Partido Social Democrático/PSD e posteriormente sob a tutela da União Democrática Nacional/UDN.
Os filhos cultos, os novos bacharéis não voltam mais à cidade. A cidade sofre uma regressão político-administrativa. Novas levas de lavradores partem. Existe uma época de aparente calma, mas não deixam de existir atritos entre oposição e situação.
João Ludgero Sobreira incorpora-se à UDN/União Democrática Nacional, enfrenta a situação e perde sucessivas eleições fraudulentas. Desiste do intento e une-se ao velho regime, já pela Aliança Renovadora Nacional/ARENA, e faz-se prefeito da comuna. Transforma-se no maior administrador da cidade. Afasta-se do antigo regime. Regressa às suas origens. Torna-se líder. Luta contra a oposição do velho regime, elege mais dois prefeitos municipais, volta à Prefeitura e morre sem sucessores.
Agora a cidade está transformada. Outrora palco de sangrentas disputas, hoje Lavras da Mangabeira é uma cidade sem muitas atrações. Desapareceram as famílias tradicionais. Sumiram os líderes. A cidade foi invadida por estranhos que procuram vantagens junto aos empreendimentos financeiros que a cada dia ganha corpo na urbe. Morreu a oposição. Os chefes usam indevidamente os dinheiros públicos. E já não se sabe quem será chefe, quem será líder.
E isto é uma pena para a cidade de tantas legendas, tantas tradições, tantos combates. É pena porque os que aspiram ao poder são homens sem mentalidade, homens sem visão política, alienados para os problemas da comunidade, para a preservação da história, que hoje muitos ignoram.