CRÔNICAS & CONTOS

Página reservada aos escritores lavrenses. Aguardamos a participação dos nossos conterrâneos.






O herói que não retorna
 Batista de Lima




Gerôncio era o coveiro de Tabocal. Rezava todo dia para que alguém morresse. Mas, quando muito, havia um sepultamento por ano. Era às vezes um velhinho que morria de velho ou um anjinho que morria de fome. Preferível ser um velho, daqueles com dente de ouro ou aliança de casamento esquecida pela família na inutilidade da mão esquerda.

Para evitar de desenterrar defunto pobre, Gerôncio conhecia de cor e salteado os portadores de dente de ouro da região. Aí era só ir, no dia do enterro, alta noite, com a lanterna, o martelo e a pá, retirar a terra frouxa da cova e desenterrar o morto. Depois, era só quebrar o dente com o martelo e levar o ouro para casa. Ele não esquece a morte do Pai do coronel Nicodemos. Foram cinco dentes de ouro dezoito. Finalmente comprou seu casebre onde mora até hoje, lá na ponta da rua.

Mas aí morreu a filha do fazendeiro Antônio Moreno. A menina tomava banho na beira do rio às oito da manhã quando caiu durinha. Não tornou mais. Trouxeram o corpo para casa e velaram até às cinco da tarde, quando se procedeu o enterro com todos os rituais cristãos. O repinique o dia inteiro, no sino da capela, parecia anunciar enterro de anjo rico. As flores eram muitas. No campo santo foi aberto o caixão para que o irmão mais velho, chegado de longe na última hora, visse o corpo da irmã. Estava linda, com todos seus anéis nos dedos e colares no pescoço.

Gerôncio não esperou pela meia-noite, veio logo às sete e escavou a sepultura da menina. Mal abriu a tampa do caixão, a finada mexeu-se e foi logo limpando a terra dos olhos. O coveiro, assombrado, embrenhou-se na mata em disparada e nunca mais foi visto por ali. Quanto à moça, que voltou para casa assombrando a cidadezinha, foi dada como doente de catalepsia, escapada por milagre. Hoje está lá contando a história para quem quiser ouvir e ainda guarda a fazenda Gitirana para dar de presente ao salvador de sua vida. Só que o delegado tem uma cela pronta pra quando Gerôncio voltar.




SOBRE O MUNICÍPIO DE LAVRAS


Dimas Macedo


Pelo fato talvez de Lavras da Mangabeira ser um município de tradições históricas – o décimo sexto município a ser criado no Ceará, ainda no período colonial – é que não aceito (e por certo não se justifica) o equívoco de comemorar-se em 20 de agosto o seu aniversario natalício. Esta data, com acerto, está ligada a uma particularidade da história de Lavras, tão-somente: foi neste memorável 20 de agosto, mais precisamente em 1884, que a Vila de São Vicente das Lavras, distrito-sede do município do mesmo nome, foi elevada à categoria de cidade, pela lei estadual nº 2.075, votada pela Assembléia Legislativa cearense, ao tempo em que era Presidente da Província Carlos Honório Benedito Otoni.

A povoação de São Vicente Ferrer das Lavras, uma das mais antigas do Ceará, cresceu em torno da atividade da mineração, que se desenvolveu em suas cercanias, ainda em fins do Século XVII e inícios do século XVIII, a qual teve determinada a sua suspensão por Carta Régia de 12 de setembro de 1758, por serem consideradas onerosas às Cortes de Lisboa.

Antes da emancipação política da comunidade de Lavras, foi criada a sua freguesia, sob a invocação de São Vivente Ferrer, por provisão de 30 de agosto de 1813, vinculada referida freguesia ao Bispado de Crato, sendo seu primeiro vigário (colado) o Padre José Joaquim Xavier Sobreira, nascido no sítio Logradouro, em 1777, e falecido em sua terra de berço, aos 17 de maio de 1827, depois de integrar o primeiro governo provisório da Província do Ceará e de se destacar como o lavrense de maior projeção do seu tempo.

O município de Lavras da Mangabeira foi criado por Carta Régia de 20 de maio de 1816, confirmando igualmente a criação o Alvará de 27 de junho do mesmo ano, sendo oficialmente instalado em 08 de janeiro de 1818, ocasião que foi levantado o Pelourinho (símbolo da autonomia política municipal) e a antiga Povoação de São Vicente Ferrer das Lavras elevada à categoria de Vila, ficando a pertencer à comunidade lavrense uma vasta região do Sul-do-Ceará, onde se encontram hoje encravados os municípios de Aurora, Várzea Alegre, Baixio, Cedro, Umari e Ipaumirim.

Assinada pelo Príncipe Regente Dom João VI, citada Resolução Régia de 20 de maio de 1816, possuía a seguinte redação: “Sou servido a levantar em vila a povoação de S. Vicente Ferrer das Lavras da Mangabeira com a denominação de – vila de S. Vicente das Lavras. Terá por termo todo o território da sua freguesia, ficando desde logo desmembrada do termo da Vila de Icó com todos os rendimentos que lhe forem respectivos. Querendo beneficiar a Câmara da dita vila de S. Vicente das Lavras, e aliviar quanto for possível os moradores do seu termo, hei por bem conceder-lhe para patrimônio uma sesmaria de uma légua de terra em quadra, conjunta ou separadamente, onde a houver desembaraçada”.

Eis aqui, portanto, um fato de constatação muito fácil, na memória do qual devemos nos louvar: 20 de maio de 1816. Foi nesta data que o município de Lavras da Mangabeira adquiriu a sua emancipação, isto é, foi nesta data que o município de Lavras da Mangabeira nasceu e é em 20 de maio que devemos render incensos à sua tradição, comemorando o seu aniversario natalício, como fazem, aliás, todos os demais municípios do Brasil.

Em 20 de maio de 2016, Lavras da Mangabeira vai comemoar 200 anos de emancipação; e, por conseguinte, em 20 de agosto desse mesmo ano o que se tecer são os 132 anos da elevação da antiga Vila de São Vicente das Lavras à categoria de cidade. E este ultimo fato não se pode tomar qual se fosse uma data alusiva à autonomia política da comuna, como se vive a propalar há bastante tempo.

Talvez pelo fato de se haver comemorado, em 20 de agosto de 1984, o centenário da cidade de Lavras, é que esse equívoco se tenha autorizado, encobrindo a autenticidade de um fato histórico relevante.

Bom seria que a data de 20 de maio pudesse ser revitalizada e restabelecida ou que, pelo menos, a edilidade lavrense pudesse esclarecer à população e à imprensa o que está efetivamente louvando em 20 de agosto, quando se fala em Semana do Município de Lavras, numa alusão à data máxima da história daquela importante comuna cearense.

O que não se pode é perpetuar um equívoco, que de há muito já devia ter sido corrigido, um equívoco certamente imperdoável para um município de tantas tradições, que excele na história política do Estado, face à magnitude e à potência das suas peculiaridades culturais e humanas.

Esclareço, de último, que aquilo que expus, acima, de forma veemente, anteriormente eu o fiz em Ceará Administrativo (nº 43, ano VII, outubro/1994), e que o texto a que faço remissão figurou no meu livro Ensaios e Perfis (Fortaleza, Editora Prêmius, 2004).

Posteriormente, em tabloide que se fez editado na cidade de Lavras, em agosto de 2007, vê-se que a prefeitura da edilidade entende, claramente, que “O município de Lavras foi criado pela Resolução Régia de 20 de maio de 1816”. Mas pasmem os leitores que ao lado da matéria em foco – Lavras da Mangabeira: Sua Origem, Sua História - encontra-se uma mensagem da prefeita aludindo aos 123 anos do nosso município.

Fico por aqui a matutar a falta de respeito, a irresponsabilidade política e o absurdo total a que chegamos nesta fase indiscutivelmente dolorosa da história de Lavras.

E se mais não digo sobre a importância da nossa edilidade, e sobre a evidência do seu importante natalício, é porque acredito que as coisas um dia se vão esclarecer.

Mas com relação à minha terra, de último, acredito mais no seu passado do que no seu presente que teima em não acontecer.



Fortaleza, 19 de março de 2009







VIAGEM AO RIO DA INFÂNCIA

Porque acredito que a vida é feita de movimentos incessantes, que modelam a nossa maneira de ser e de agir, proveito o tempo de lazer para viajar, às vezes para conhecer o que existe para além dos muros do Brasil.
Umas férias merecidas, sorvendo a cultura e a linguagem de velhas cidades européias, deixam no espírito, na imaginação e na memória algumas efusões que dificilmente se apagam nas nossas retinas fatigadas.
Hoje, treze de dezembro, estou de retorno da bela cidade de Le Havre, situada na região da Normandia francesa, bem no encontro do estuário do Sena com o Canal da Mancha.
A minha condição de professor convidado da Universidade de Le Havre, onde ministrei conferência sobre o processo eleitoral e os valores da democracia brasileira, me faz pensar na recompensa que a vida nos dá a cada instante.
O que quero registrar nesta crônica, contudo, é o impacto que essa importante cidade portuária exerceu sobre mim, sobre a minha visão e a minha sensibilidade de artista e de viajante.
Enfrentei uma tempestade de neve, há três dias, quando desembarquei em Paris, vindo da Alemanha, mas em Le Havre a temperatura se fez mais generosa com a minha condição de nordestino, acostumado com o calor dos trópicos e com o clima ameno que somente o Ceará sabe transmitir a seus filhos.
Em Le Havre, assim como na França e em toda a Europa, as condições de vida das pessoas são muito diferentes daquelas em que vivem os nordestinos e muitos habitantes do interior do Brasil.
A mente humana aqui foi libertada do processo de escravidão social e do processo de dependência política que vinculam muitos cearenses à manipulação dos seus representantes políticos.
Em qualquer parte do mundo aonde esteja, sempre me vem ao baile das lembranças os encantos da terra onde nasci e assim também o traço natural e a cultura do nosso querido Ceará.
Navegando sobre as águas do Sena, em Paris, ou contemplando o estuário do Sena, em Le Havre, o que me vem à mente, de plano, é o Rio Salgado e a sinuosidade das águas da infância; o que se impõe no percurso da lembrança é o retrato da velha cidade onde nasci.
Lavras está em todas as cidades pelas quais passei em todos em dias de viagem: assim em Londres, como também em Bruges, Amsterdam, Paris, Bruxelas ou Colônia.
É como se o mapa mundi fosse povoado de saudades e lembranças que se deixam gravadas no recesso do sonho. É como se o Reno, o Tâmisa e o Sena refletissem a brisa serena do Salgado, o mais doce de todos os rios que os meus olhos não se cansam de ver.

Paris, 13.12.2010

Dimas Macedo.


A NOITE E A CIDADE



O dia cai
A noite chega
E com ela a escuridão e as luzes da cidade.
A cidade é clara
A noite escura
A cidade é claridade
A noite realidade
A cidade é batucada
A noite tranqüilidade
A cidade é falsidade
A noite sinceridade
A cidade maldade
A noite ingenuidade
A noite na cidade só nos traz saudades.
A noite só na cidade
Não se ver felicidade.

Cristina Couto
Fort. 25 de outubro de 1999.


As Cidades de Chico Buarque (Crônica exibida na Rádio Vale do Salgado de Lavras da Mangabeira, em 17 de maio de 2011.
Autor: Dimas Macedo.


Chico Buarque de Holanda pertence a uma elite de intelectuais brasileiros que, em face de sua competência e militância, alcançaram ressonância internacional. A essa elite pertencem Vinícius de Moraes e Tom Jobim, Celso Furtado e João Cabral, Augusto Boal e Gilberto Gil.
As raízes do samba e a malandragem carioca, o nacionalismo político de Getúlio, a aventura musical da Bossa Nova e a repressão militar da década de 1960 jogaram o destino do Brasil nas mãos de Chico Buarque de Holanda: misto de compositor e teatrólogo, romancista e intérprete da contextura lírica do Brasil.
O poeta, o cronista, o militante político, o intelectual e o letrista estão em Chico Buarque como em nenhum outro representante da nossa estética cultural e política.
Sempre carregou na alma os estigmas da herança paterna, provinda do refinamento e da reflexão de Sérgio Buarque de Holanda, que pôs em questionamento os sentidos da brasilidade e o chamado jeitinho brasileiro.
As Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda são as raízes que sempre alimentaram a escansão poemática de Chico Buarque, quer do ponto de vista da nossa formação social, ou ainda quando tomada a musicalidade das suas letras a partir da nossa urbanidade e da nossa memória coletiva.
Chico Buarque de Holanda é uma espécie de síntese do Brasil profundo, da nação que nunca se curvou diante do arbítrio. A sua voz e a sua sensibilidade serviram, durante muito tempo, de esteio do povo brasileiro, porque um intelectual, comprometido com a sua consciência, constitui uma força social que se eleva muito acima da norma do Estado.
Neste texto, contudo, não pretendo falar da personalidade de Chico Buarque de Holanda, sequer do seu perfil de intérprete da nossa música popular. Sobre ele muito já se disse, mas é certo também o afirmar-se que muita coisa ainda resta a dizer.
E entre as coisas que ainda resta a dizer, sobre o discurso e a prática musical de Buarque, eu queria destacar as suas relações com as cidades, ou com a problemática do espaço urbano, especialmente porque não existe apenas uma, porém diversas personas por trás desse grande artista brasileiro.
Sei que existem livros seminais sobre Chico Buarque de Holanda, tais os de Adélia Bezerra de Menezes (Poesia e Política em Chico Buarque de Holanda), Rinaldo de Fernandes (Chico Buarque do Brasil) e Wagner Homem (Histórias de Canções – Chico Buarque), mas o texto de Cristina de Almeida Couto - As Cidades de Chico Buarque (Fortaleza, Edições Poetaria, 2010) é um livro que, de plano, nos chama a atenção.
A autora, jornalista, publicitária e professora universitária de talento, reveste o seu discurso com as cores da comunicação e com os recortes da estrutura lírica da linguagem, pois que no livro uma escrita sensível parece nos trazer de volta a emoção e os olhares de Buarque acerca da estética das urbes.
O livro é resultado de uma pesquisa acadêmica da autora, feita com o rigor da síntese e a retificação das fontes, o que mostra a seriedade com que Cristina abordou o seu objeto de trabalho.
A abertura do sumário entremostra o viés analítico da autora, as suas linhas de força, a sua precisão semântica e imagética, pois que de imagens são feitas a perspectiva e o tecido maduro do ensaio.
A resenha de um livro não exige que falemos acerca dos méritos de quem o escreveu. E é por isto que não faço, neste texto, o elogio da autora.
Registro, tão-somente, que Cristina é uma pessoa extremamente ética e cativante, pois que nos toca o coração com a sua verdade. A ela muito devem a cidadania ativa e as discussões sobre o meio ambiente e o patrimônio  histórico e cultural de Lavras da Mangabeira.
Amante da cultura lusófona, tem sido, no Ceará, uma irrequieta promotora de eventos e encontros que colocam a lusofonia e a lusofilia como pontos de observação e do maior interesse cultural.
Honra-me a condição de ser seu conterrâneo, e orgulho-me, por igual, de ter lido de primeiro a escritura sensível do livro, e de ter sido escolhido para recebê-la, no próximo dia 21 de maio, na Academia Lavrense de Letras.

Nenhum comentário: