sexta-feira, 24 de novembro de 2017

MÃE DINDINHA - Por Jorge Emicles.



Acercar-se da casa grande do sítio Tatu, encravado no coração rural da velha Lavras da Mangabeira, à primeira vista é como chegar a uma dentre tantas centenas de milhares, de fazendas nordestinas. Tudo ali nos parece típico. Há a casa grande centenária, de paredes grossas, confeccionadas em tijolos de proporções descomunais para os padrões atuais. Há ao fundo o igualmente centenário açude, que mesmo já assoreado pela antiguidade de sua construção ainda é plenamente hábil em salvar os moradores e a criação local da medonha estiagem que ciclicamente afeta toda a região do nordeste brasileiro. Há os baixios, ao lado, que fazem brotar hoje a pastagem necessária ao sustento das criações de bovinos e ovinos, que, porém, não guardam mais os vestígios da antiga produção de cana-de-açúcar anualmente moída e transformada em rapadura no velho engenho. O engenho mesmo se identifica por um amontoado de engrenagens enferrujadas, já a descampado, porque o prédio que guarnecia a ferragem já não existe mais, destruído que foi pela quase criminosa ação do tempo, que não deixa nunca guardar a eternidade dos momentos de alegria ou enfado, quando perdidos no negrume obscuro do passado.
                   Não se guardaram, muito menos, pistas valiosas de o que se desenrolava por ali há cem anos apenas. Não fosse pelo relato oral dos descendentes, por exemplo, não seríamos capazes de reconhecer que a indústria que mais prosperou naquele pitoresco, aprazível e bucólico lugar, onde o silêncio reina soberano, convidando aos visitantes, senão a alguns momentos de contemplação diante da paisagem, por certo a um relaxante banho nas águas do velho açude, o que faria qualquer de nós absolutamente inocente da verdadeira seara que se colhia das entranhas daquela terra: a carne humana, negra e sofrida da escravidão. Era essa, afinal, a principal produção da gigantesca indústria oligárquica que se instalou na velha Lavras, maestralmente comandada inusitadamente por uma mulher. Não, contudo, por uma qualquer. Afinal, a cultura coronelista instalada no sertão não estaria nem um pouco disposta a gentilmente ceder o poder do jugo; a fortaleza do bacamarte e a autoridade do patriarcado a uma mulher, fosse esta quem fosse.
                   Para a história, esta mulher fez-se conhecer como a velha Fideralina Augusto Lima, matriarca de uma populosa família e maior de todas as expressões políticas de sua terra, sombreando inclusive vultos históricos regionais e nacionais como os de Bárbara de Alencar e Anita Garibaldi. Sua autoridade igualmente é reconhecida pela importância em relevantes passagens históricas da região sul cearense, como em face de sua íntima amizade com o Padre Cícero, de Juazeiro, sua contribuição para a atestação científica do milagre da hóstia (foi seu filho e médico Ildefonso uma das autoridades científicas que deram atestado da veracidade do acontecimento), sua indispensável participação nos fatos  que desembocaram na revolução de 1914, com a consequente derrubada do presidente do Estado, movimento que sagrou outro filho seu, Gustavo, como vice-presidente do Estado, para ciúmes e desgraça da astuta raposa que era Floro Bartolomeu. Também soube resistir, pelo prestígio ou pela bala, a todas as tentativas de destituí-la do soberano poder simbólico que sempre exerceu na região, mas igualmente em todo o Estado. Mais que em outros casos, o poder da velha matriarca era sobretudo simbólico, porque cargos públicos mesmo ela jamais os exerceu, muito embora sempre tenha tido a primazia da influência na nomeação de seus ocupantes.
                   A horda de seus maiores adversários políticos é composta quase sempre por sua própria parentela. Seja oriunda da irmã de sangue conhecida em família simplesmente como Pombinha, seja proveniente de seu próprio filho Honório, é do sangue dos Augusto que ela teve as mais severas resistências. A questão chegou ao cúmulo de ela haver determinado a deposição do filho Honório da chefia do partido governista a bala, através de cabras por ela muito bem armados e comandados pelo seu sempre fiel escudeiro, o filho Gustavo Augusto Lima, depois da mãe a maior liderança política de sua terra. Fez isso, contudo, não sem uma severa advertência a seus cabras, a de que quem porventura arrancasse sangue de Torto (como chamava a velha a seu filho Honório) pagaria com a própria vida. Esse inusitado fato nos prova que antes da grande líder política, era um coração de mãe que batia no peito daquela valente mulher.
                   Um historiador que contemple a velha casa do Tatu, em seus corredores hoje vazios pressentirá por certo a velha matrona a dar ordens a seus cabras, a dirigir os trabalhos da casa e da propriedade toda, a tomar conta de seus prepostos, a articular o futuro político de sua terra, através das inúmeras e firmes alianças que sempre fez com os coronéis regionais. Também encontrará semelhanças entre a casa grande do Tatu e a fortaleza de Maria Moura, personagem principal do derradeiro romance da imortal Rachel de Queiroz, reconhecidamente inspirada na velha Fidera.
                   Para a sua descendência, como é o nosso caso, o que vemos ao chegarmos à velha propriedade são, primeiro, as lembranças de criança, quando inocentes corríamos sob os domínios da velha matriarca, sem nos darmos conta das inusitadas refregas que já se deram por ali. Sem saber, éramos descendentes das riquezas que a escravidão gerou e do convencimento que o bacamarte impôs. Tudo isso bem regado a bastante sangue, seja de forasteiros, seja dos próprios membros da família. A verdade é que a família Augusto ainda não conseguiu se libertar totalmente da herança de violência dos tiranetes. Em seguida, as novas gerações dos Augusto eram informadas da imponência histórica de sua ascendência. Apesar da quase inexistência de vestígios, aquele velho sítio Tatu já foi o centro do mundo. Mundo comandado por uma mulher, que por sua realeza se encontrava acima de todos os homens, possuía o domínio sobre todas as armas e sobre todas as vontades de tantos quanto a cercavam. Era mandona, porém, sempre maternal com sua descendência. Chegou a aparar alguns netos em seu nascimento, e por toda a parentela era carinhosamente chamada de mãe Dindinha. Não descendíamos, portanto, da “coronela” de saias Fideralina, pois quem nos guardava em nossas brincadeiras de criança sempre foi a mãe Dindinha, mulher misteriosa, de imenso poder simbólico, que havia escondido uma botija cheia de ouro, a qual geração após geração seus descendentes procuram, mas que permanece encantada. A mesma mãe Dindinha que construiu o açude para toda a descendência, cuja fé era tão inabalável, que em certa ocasião, quando uma tempestade ameaçava arruinar a parede do reservatório, passou toda uma noite orando, pegada em seu rosário, para obter a preservação de sua construção, no que foi atendida pelos céus. Conhecíamos sim, a avó zelosa, que inconformada pela injusta morte do neto, em Princesa da Paraíba, mandou invadir o lugarejo para vingar o mal feito, tendo determinado a seus cabras que de cada homem abatido lhe fosse trazida uma orelha, tendo daí começado a decantada história de seu famoso rosário de orelhas, com o qual regularmente teria proferido suas orações.
                   Para além dessas carinhosas lembranças, embebidas tantas vezes na fantasia da meninice, nas lembranças da oralidade repassada por pessoas que não mais se encontram nesse plano e pelas lendas mesmo difundidas por diversas gerações a respeito de quem teria de fato sido essa inesquecível mulher, devoramos com imensa alegria a biografia da velha matrona recentemente lançada pelo ilustre jurista, escritor, poeta e historiador Dimas Macedo. Justa reverência que a história faz à imensidão dessa grande mulher; belo e criterioso trabalho que somente poderia ter nascido da grandiloquência de uma mente como a do culto Dimas Macedo.