terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

DIÁRIO DO NORDESTE

COLUNA (26/1/2010)
Batista de Lima


Glória de vida longa. Uma pessoa com cento e dois anos é uma pepita que se encontra no meio desse garimpo humano padronizado e sarado em academias. No meu caso, no entanto, não foi preciso ir muito longe para encontrar essa raridade, tendo em vista que ela era familiar e com a qual mantive contato desde a minha mais tenra idade. Trata-se de Glória Pereira de Lima, ou Glorinha. (...) Mulher com esse nome é fadada à vida longa. É como se "ficasse para semente".Uma estatística do IBGE, divulgada há pouco, apontava para pouco mais de quinze mil pessoas, em todo o Brasil, com mais de cem anos. Esse número despencava pela metade ou mais, quando se tratava daquelas com mais de cento e um, e muito mais diminuía, quando se referia às pessoas com mais de cento e dois anos. Segundo se afirma, menos de cinco mil estão com essa idade. Cada uma dessas pessoas é uma joia rara que se encontra no meio de um mundo hoje todo de jovens, onde toda a indústria cultural, todos os holofotes da mídia estão voltados para a juventude.Uma pessoa com cento e dois anos é uma pepita que se encontra no meio desse garimpo humano padronizado e sarado em academias. No meu caso, no entanto, não foi preciso ir muito longe para encontrar essa raridade, tendo em vista que ela era familiar e com a qual mantive contato desde a minha mais tenra idade. Trata-se de Glória Pereira de Lima, ou Glorinha. Daí se concretiza a pregação, também do clã, de que nome ideal para se colocar numa criança do sexo feminino é de Glória ou Vitória. Mulher com esse nome é fadada à vida longa. É como se "ficasse para semente".O caso de Glorinha é curioso. Nasceu a 17 de dezembro de 1907, em um sítio chamado Baixio Verde, em Lavras da Mangabeira. Ainda garota mudou-se para outro sítio próximo, chamado Bom Lugar, e quando casou-se em 1929 foi morar em outro sítio chamado Barra. Esteve grávida 18 vezes e hoje há dez de seus filhos vivos, tendo o mais velho já a idade de 80 anos. Passou 73 anos casada com Raimundo Nonato Costa, e é porque Nonato é do Latim "nonatus", não nascido. Imagine-se se fosse apenas Raimundo Nato da Costa.Descendente de cristãos novos, o casal sempre manteve uma prática religiosa devotada a São Sebastião, padroeiro do distrito de Mangabeira, São Raimundo Nonato, padroeiro de Várzea Alegre e São Vicente Ferrer, padroeiro de Lavras. É tanto que ao se falar em sua biografia, os familiares retornam no tempo para dizer que o casal quando nasceu, numa diferença de alguns dias, o papa era Pio X, o bispo do Ceará era Dom José Joaquim Vieira, o vigário de Lavras era Monsenhor Miceno Clodoaldo Linhares.O mundo político da época se apresentava com Afonso Pena como Presidente da República, Nogueira Acióli como Governador do Ceará e Gustavo Augusto de Lima como Prefeito de Lavras da Mangabeira. Essa situação histórica é para esclarecer que Glorinha nasceu na República Velha, passou pelo Estado Novo, entrou na República Nova, cruzou a ditadura e chegou à era Lula. Testemunhou o sofrimento dos nordestinos em secas como as de 1915, 1919, 1932, 1942 e 1958. Mas também assistiu a grandes enchentes, como a de 1916, quando uma verdadeira tromba d´água despencou sobre o sítio Baixio Verde, arrombou o grande açude que seus ancestrais construíram e que mesmo arrombado, ainda sangrou três dias, como reza a lenda.Esses fatos narrados demonstraram que uma pessoa que passou por todos esses momentos é um monumento da memória oral. Sua vivência no tempo do cangaço, do fanatismo de Juazeiro, com sua crença no Padre Cícero, esteve viva na lembrança. Todo esse patrimônio adquirido é um livro aberto para a memória.Essa longevidade de Glorinha é algo contagiante e hereditário. Outra Glória sua prima também passou dos cem anos. Uma outra contraparente sua e que ajudou na criação de seus filhos, e que tem por nome Raimunda Oliveira, hoje reside em Santa Helena, Goiás, e já ultrapassou os 104 anos. Todas essas senhoras fazem parte de uma estirpe de mulheres determinadas, vocacionadas para matriarcas, fortes diante das intempéries do meio em que vivem. Conviveram com um mundo de penitentes, profetas, miçangueiros, violeiros, rabequeiros, curadores e vaqueiros.Toda a região onde nasceu ainda guarda recordações dos grupos de penitentes de Joaquim Mergulhão, Arlindo Geraldo e de Chiquinho de Manu, e parece ainda ouvirem o tilintar das disciplinas e o canto lamurioso nas noites da Semana Santa. Os vendedores que se hospedavam em sua casa eram seu Rufino, Manuel das cordas, Zé Alves e Seu Zacarias. Eram ambulantes que traziam mercadorias de Juazeiro e vendiam pelas ribeiras. Eram andarilhos que traziam também notícias frescas e às vezes até pediam paga por alvíssaras.Essa longevidade desperta a curiosidade de quem a conheceu. Por isso vem logo a pergunta: qual a receita para se viver tanto? Entre as suas muitas práticas estão: a alegria constante, a hospitalidade, o amor às plantas e às flores, a decoração, a vivacidade e a arte de conversar. Conversar muito com muitas pessoas, bem à vontade. Tornar o ambiente em que vive muito alegre e descontraído, e principalmente ter esperança. Depois crer em Deus, em Nossa Senhora e em todos os santos. Participar de novenas, leilões, quermeces, renovações, coroações, desobrigas, casamentos, batizados, crismas e festas juninas.Personagens como Glorinha escrevem nossa história sem assinar embaixo. Constroem casas viradas para o nascente, produzem filhos, que produzem netos, que produzem... Votam, rezam, sonham, cantam, choram quando é preciso, suam, sangram, creem em Deus e nos homens, amam a pátria, lavram a terra, cultivam a honestidade e vão passando sem registro na história oficial, que só tem olhos para aqueles que tudo fazem para tirar algum proveito de tudo isso.No último dia 17, com cento e dois anos e um mês de vida, Glorinha foi convocada para outra dimensão, para, com sua experiência de vida, contribuir na proteção desse mundo tão conturbado, e em especial por nós nordestinos, filhos deste Brasil de caboclo, de mãe Chica e pai João.

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